Diário de Bordo do Sunshine III

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Maceió, Janeiro 2025

Primeira foto do veleiro Sunshine após nossa chegada à Federação de Vela e Motor em Maceió. À esquerda, o capitão Érico Amorim das Virgens, em projeção com o tamanho do veleiro em seu berço de repouso. Percebe-se a retranca dentro das madeiras do berço.

Capítulo 1— O Chamado do Horizonte

O Sunshine III passou 20 anos parado, sem navegar. E enquanto isso, o tempo o envolvia como uma névoa suave, quase como se a maré, por um capricho do destino, tivesse decidido deixá-lo ali, esperando. O dono, Cláudio Vieira, se foi antes de ver o barco renascer. Fiquei sabendo disso tarde demais, como acontece com tantas histórias: a morte chegou como uma maré alta, arrastando consigo não só o homem, mas também os sonhos que ele e o veleiro haviam compartilhado.

Mas o que é a morte senão um intervalo? Uma pausa na narrativa, que só nos ensina a importância da jornada que continua? E o Sunshine continuou, mas em silêncio. Enquanto as décadas se arrastavam, o veleiro dormia, adormecido entre os ventos esquecidos e as marés que já não o tocavam. E eu, sem saber, tocava minha vida.

Até que chegou dezembro.

A segunda foto do veleiro Sunshine III após nossa chegada em Maceió. As madeiras do piso e das portas internas do barco ficaram por ali por vários anos, guardadas pelo fiel escudeiro de Claudio Vieira, o marinheiro Zézé. O capitão Érico Amorim das Virgens aparece à direita na foto.

De repente, eu estava em Maceió, com o Capitão Érico Amorim das Virgens, um amigo que compartilha a mesma ânsia por mar e aventuras. Érico o fio condutor que induziu toda a linha de futuro deste momento em diante. Ele sabia que eu estava pra comprar um veleiro de 35 pés em Boston. Estava a procura de um Oday 35 fazia tempo e tinha encontrado um. Pois bem, Érico recebeu telefonema de Maceió e curto-circuitou o sistema. Bom, eu já tinha ouvido falar do Sunshine III, mas, como um sussurro distante, algo que não sabia se era um sonho ou um convite. Viajamos pra Maceió no carro do meu pai e no caminho percorrermos nossas lembranças e nossas histórias à bordo do veleiro Musa. O veleiro que foi minha escola por quase três décadas. O veleiro do capitão Érico Amorim tem muitas histórias boas pra contar. Pois bem, marinheiros na estrada. Quando vi o barco, algo me puxou para ele, como se os cabos invisíveis que conectam destinos tivessem sido puxadas com força. Aquele barco tinha já sua grande história e mais um capítulo de sua vida-história que ainda estava ali sendo escrito diante de nossos olhos. De nossas vidas.

Era um barco antigo, mas ainda com vida. Um gigante adormecido, esperando para ser despertado. Como nós, quando deixamos nossos próprios sonhos para depois, adiando nossa própria viagem. Talvez eu tenha visto um pedaço de mim naquela fibra, aço e madeira envelhecido. Decidi então comprar o Sunshine III.

Este não é apenas um veleiro qualquer. Ele já havia cruzado os mares, já havia tocado as águas cristalinas de Fernando de Noronha, participando de regatas e ganhando, sim, ganhando regatas, até vencendo o imbatível veleiro Garra de Marco Camelo em Natal -RN (mas essa história é para outro momento). Ele também esteve na Bahia, durante a festa dos 500 anos do Descobrimento do Brasil, com o Capitão Érico e Cláudio Vieira à bordo. A história dele, assim como a minha, estava entrelaçada com o oceano, com as viagens, com as vitórias e as derrotas que se somam ao longo do tempo.

Mas, depois disso tudo, o Sunshine III adormeceu. Ficou ali, parado, como se aguardasse algo. O mar nunca deixou de chamá-lo, mas o silêncio do tempo se fez presente. Eu me pergunto, quantas vezes o próprio mar chama e nós não ouvimos? Ou talvez, nós simplesmente não estamos prontos para ouvir.

Então, um dia, em Natal, escutei seu chamado. Érico, o vetor transmissor como já disse. Porque sim, a vela é um vírus que toca e transforma a bioquímica do indivíduo. O vento, que antes parecia indiferente, agora sussurrava seu nome. Sunnnshanneeeee. O Sunshine III estava me convocando. Estava me dizendo que era hora de trazê-lo de volta para as águas azuis. E eu sabia, com uma certeza imensa, que algo estava prestes a acontecer. O barco, que por tanto tempo esteve adormecido, poderia estar pronto para navegar novamente após o ser assumido. E eu, finalmente, estava pronto para aceitar essa missão. Será? Dúvidas que persegue todos os velejadores que conheci até hoje. Ninguém está pronto para o mar, que é infinito num volume finito.

Foi então que Paulinho entrou em cena. Um parceiro de Érico, Cláudio Vieira e tantos outros que compartilharam histórias ao redor do mar. Eu já havia estado em Maceió diversas vezes, velejando com Érico a bordo do veleiro Musa, indo para a regata de Maragogi, cruzando as águas entre 12 e 18 milhas náuticas para competir e confraternizar-nos nos anos 90 entre Maceió, praia do Francês e Maragogipe. Certamente, naquela época, naquela mesa de velhos lobos-do-mar, Paulinho, Cláudio Vieira, Érico estavam lá, entre goles de vinho, cerveja e risadas, nas farras da Federação de Vela e Motor (FVM) de Maceió. Mas só em dezembro, diante do Sunshine III, compreendi algo maior: os barcos têm seus próprios meios de conectar velejadores, tecendo laços que nem sempre percebemos de imediato. Como se a própria embarcação traçasse seu destino, unindo aqueles que compartilham sua essência.

Foi nesse momento que entendi. O Sunshine III não apenas me escolheu. Ele já sabia que, mais cedo ou mais tarde, nossos caminhos se cruzariam. Paulinho num final de noite lá no churrasquinho do alinhado me disse, Zé esse barco tava esperando você e só você poderia remontar esse quebra cabeça de peças espalhadas e adormecidas. Foi assim que começou. Ou terminou.

Capítulo 2 — O Tempo de Partir

O Sunshine III descansava no seu berço na Federação de Vela e Motor em Maceió, como um viajante adormecido que pressente a proximidade da jornada. O casco já conhece o sal faz tempo, mas ainda não cruzou o horizonte; as velas esperam, dobradas, como pulmões que ainda não se encheram de vento. Agoara já conectado comigo seguia sua gestação. Era outra vez um barco que seguia seu curso, entre ajustes minuciosos e pequenas batalhas contra o tempo. Há sempre algo a revisar, um detalhe a melhorar, um parafuso que parece solto apenas para testar minha paciência. São 20 anos estacionados que pareciam reservados para o nosso encontro. Dizem que é o barco que nos escolhe e nos acolhe. Essa última parte eu mesmo incluo no dito já popular.

Construir um barco – ou melhor, reconstruí-lo – não é apenas um trabalho de madeira, fibra e metal. É um exercício de paciência, resiliência e, acima de tudo, aceitação. Nunca haverá um dia em que eu olharei para o Sunshine III e direi: “Agora está perfeito.” Sempre haverá algo mais a fazer, um novo aprimoramento possível, uma ideia que poderia ter sido melhor executada. Isso foi repetido por Érico durante décadas e por muitos outros lobos do mar. Essa é a armadilha da preparação infinita: a ilusão de que o barco e o capitão precisam estar completos antes da partida. Já era assim o meu antigo Rio 20, de 20 pés nos anos 90’s e os Daysailers na última decada. Porém agora são 35 pés de pequenos detalhes e grandes volumes.

Mas se há dúvidas que me acompanham – e são muitas –, há também uma certeza: em março de 2025, ele tocará seu habitat. Água. O que está por vir pertence ao oceano, não ao estaleiro. A cada onda que se quebra contra o prainha de federação de vela, o tempo me lembra que esperar pela perfeição é o mesmo que nunca partir. O vento não aguarda, o mar não estagna, e a vida tampouco espera aqueles que hesitam demais, e procuram a perfeição.

Tenho pensado muito sobre o ato de zarpar. O instante exato em que as amarras são soltas e o barco, pela primeira vez, deixa o porto sem olhar para trás. Talvez a maior viagem não seja aquela que se faz sobre as ondas, mas a que acontece antes mesmo de içar as velas: a travessia do medo à decisão final que aquele é dia. Sei que nenhuma embarcação estará completamente pronta e que nenhum capitão estará, de fato, preparado para tudo que virá. Mas a vida não espera a perfeição, apenas o movimento.

O maior temor de partir nasce dessa inquietante sensação de que algo ainda falta. Talvez sempre falte. Mas chega a hora em que o único ajuste necessário é soltar as amarras e confiar. O Sunshine III não foi feito para ficar ancorado. Assim como eu também não.

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Prof. José-Dias do Nascimento Júnior
Prof. José-Dias do Nascimento Júnior

Written by Prof. José-Dias do Nascimento Júnior

Professor, Astrofísico, Astrónomo, Cientista, Velejador

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