Cultos religiosos representam um alto risco de disseminação do COVID-19

A ciência não deixa dúvidas: participar de um evento religioso — mesmo com medidas de proteção em vigor — é inerentemente arriscado durante esta pandemia que está sendo causada por um vírus que é transmitido pelo ar.

É chocante saber que na véspera da Páscoa o ministro Kassio Nunes Marques (STF ) liberou a realização de missas e cultos religiosos em todo o Brasil, após solicitação da associação evangélica ligada a Damares Alves. Produto de solicitação dos Juristas Evangélicos (Anajure) juntamente com Malafia.

Além das questões inerentes jurídicas, levanto aqui o problema associado, especificamente, à transmissão do vírus. Deixarei para os especialistas do direito analisar estas questões além da física que, aparentemente, fere a constituinte no que diz respeito ao “direito à vida”. Sem falar que o próprio supremo tribunal já tinha decidido por unanimidade que estados e municípios têm autonomia para restringir ou não o fechamento de recintos devido à situação excepcional da pandemia. Possivelmente, se existisse algum médico cientista a ser consultado antes da medida ser publicada, este seria claro em dizer que ao participar de um serviço religioso — mesmo com medidas de proteção — temos uma transmissão causada por um vírus que se espalha pelo ar em gotículas.

Um questionamento similar aconteceu na suprema corte norte-americana. Neste caso, a Sociedade Médica do estado de Nova York (MSSNY) — representantes do Litigation Center da American Medical Association e das Sociedades Médicas Estaduais — no caso de uma demanda parecida no tribunal superior americano, que a medicina organizada tem o “máximo respeito ” para com as religiões e também trabalha para permitir que as pessoas exerçam sua religião livremente. Porém, com a pandemia COVID-19 e diante da maior emergência de saúde pública do século, os governos precisam pesar da ciência, necessidades humanas realmente básicas e liberdades civis dos cidadãos.

Claro que são escolhas difíceis e proteger as pessoas deveria vir sempre em primeiro lugar, como prega o Artigo 5º da nossa Constituição no Brasil. Neste contexto, a ciência mostra claramente congregar um posicionamento firme também a respeito desta situação: ambientes fechados colocam em risco a saúde pública. O perfil de risco de um serviço religioso é semelhante ao de participar de um evento esportivo fechado. É como ir a bares fechados e lotados ou restaurantes. Do ponto de vista de transmissibilidade da COVID-19, todas estas atividades devem ser proibidas por estarem em ‘zonas vermelhas’ nesta fase da pandemia. Nestes ambientes, os ‘clusters” de aglomerações de infecções por COVID-19 estão ligados, principalmente, aos ambientes internos. Mesmo que a ventilação seja melhorada para reduzir a transmissão, não há consenso científico sobre os padrões ideais para se controlar a propagação do COVID-19 em um ambiente fechado.

Agora, a ciência não tem nenhuma dúvida que grandes grupos possuem, estatisticamente, mais pessoas infectadas e mais pessoas potencialmente infectantes. Em atividades onde existe uma proximidade entre pessoas, as menores gotículas de SARS-CoV-2 podem permanecer no ar e viajar por mais de um metro e oitenta. Sabe-se, também, que a longa duração de exposição e permanência em um só lugar é um grande fator de risco. A quantidade de vírus a que uma pessoa é exposta pode influenciar a chance de infecção e a gravidade; a carga viral e, consequentemente, suas chances de vida ou morte. Neste sentido, quando pessoas estão falando alto ou cantando, são expelidas mais gotas de fluido oral do que através da fala normal. As gotículas podem permanecer no ar de 8 à 14 minutos antes de se evaporar.

As figuras representam um gráfico de transmissão COVID-19 e valores de distribuição em sistemas discretos simulados. Podemos ver o primeiro e o segundo estágio. Alguns dos nós são os super-espalhadores. Em reuniões religiosas acontece este tipo de situação. [3]

Os super espalhadores

Normalmente, em situações corriqueiras, qualquer pessoa que adoece com a gripe a espalha, em média, para o mesmo número de pessoas. Mas, para algumas doenças, certos indivíduos infectados — os chamados super-espalhadores — infectam muito mais pessoas do que outros. Junto com o sarampo e o Ebola, a COVID-19 parece ser uma dessas doenças. Os 10% das pessoas mais infecciosas produzem 80% das infecções. É por isso que trabalhos como os de Bjarke Frost Nielsen do Instituto Niels Bohr da Universidade de Copenhagen e seus colegas mostram através de modelos, que a redução do tamanho das redes sociais ativas pode ajudar muito a conter a epidemia. [ Physics Today, de junho de 2020, página 25, no artigo de Alison Hill]. A ideia é que cada indivíduo em uma rede de contágio, a cada passo do tempo, interaja com uma outra pessoa aleatoriamente em seu círculo social imediato.

Neste estudo, os pesquisadores mostram que os super espalhadores, quando isolados, reduzem drasticamente o pico e o número total de infecções. Isto, para uma rede uniformemente distribuída. Porém, quando os laços sociais são agrupados o espalhamento aumenta muito. No caso das reuniões religiosas, as coisas se complicam ainda mais quando os participantes de uma determinada reunião atravessam uma cidade inteira para se reunir com grupos de uma determinada congregação que não respeita os distritos geográficos de uma cidade. Esta descoberta se insere dentro da descoberta das bolhas sociais. (B. F. Nielsen, L. Simonsen, K. Sneppen, Phys. Rev. Lett. 126, 118301, 2021.)

Aqui um relato interessante:

Entre 6 e 8 de março, uma igreja na zona rural de Arkansas sediou um evento infantil de vários dias. Ao longo dos três dias, adultos e crianças participaram de jogos envolvendo contato próximo e uma refeição compartilhada em estilo buffet. Em 11 de março, o pastor da igreja e sua esposa começaram a desenvolver uma leve tosse e febre. No dia seguinte, ao ouvir sobre sintomas respiratórios semelhantes que apareceram na congregação, o pastor imediatamente fechou sua igreja. Os testes revelaram que o par havia de fato contraído COVID-19 e as investigações rastrearam a exposição aos eventos da igreja alguns dias antes. A investigação identificou a fonte como dois sujeitos que compareceram aos eventos da igreja entre 6 e 8 de março enquanto eram levemente sintomáticos.

A primeira em cada cinco pessoas é tradicionalmente considerada um super espalhador. Essas são pessoas que parecem transmitir uma determinada doença infecciosa de forma mais ampla que a maioria. Existem várias hipóteses que tentam explicar os eventos de super propagação, desde fatores ambientais que colocam alguém em um lugar onde é fácil espalhar o vírus amplamente (alguém no serviço de alimentação, por exemplo), até a possibilidade de que algumas pessoas que liberam ativamente volumes muito elevados de partículas de vírus, embora mal exibindo quaisquer sintomas.

A prática do coral, reuniões extensas de família e eventos em pequenas ou grandes igrejas parecem formar as redes de super propagação e evitá-las ajudaria muito e salvaria vidas. A física que rege esta dinâmica, também explica porque as fake news são tão mais impulsionadas que as notícias verdadeiras.

Fica a dica para o ministro Kassio Nunes Marques (STF ) de não favorecer os super espalhadores!!!!

Algumas referências úteis,

[1] COVID-19 Superspreading Suggests Mitigation by Social Network Modulation; Bjarke Frost Nielsen, Lone Simonsen, and Kim SneppenPhys. Rev. Lett. 126, 118301 — Published 15 March 2021 Link: https://journals.aps.org/prl/abstract/10.1103/PhysRevLett.126.118301

[2] Virality Prediction and Community Structure in Social Networks. 28 August 2013 Lilian Weng, Filippo Menczer & Yong-Yeol Ahn Scientific Reports volume 3, Article number: 2522 (2013) Link: https://www.nature.com/articles/srep02522

[3] Drawing transmission graphs for COVID-19 in the perspective of network science. Published online by Cambridge University Press: 04 November 2020 N. Gürsakal , B. Batmaz and G. Aktuna Link: https://www.cambridge.org/core/journals/epidemiology-and-infection/article/drawing-transmission-graphs-for-covid19-in-the-perspective-of-network-science/5BB5736BE9CE7246BE2970AEC4B9AE55

[4] MOSAIC: COVID-19 pandemics modeling with modified determinist SEIR, social distancing, and age stratification. The effect of vertical confinement and release in Brazil; Published: September 2, 2020, Plos One. Link https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0237627

[5] How can we stop the spread of false rumors about COVID-19? Better math. https://news.northeastern.edu/2020/03/02/how-can-we-stop-the-spread-of-misinformation-about-covid-19-better-math/ Paper Link: https://www.nature.com/articles/s41567-020-0810-3'

[6] Physics Today, de junho de 2020, página 25, no artigo de Alison Hill

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